quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Primeiros pacientes

Antes de me formar sempre me perguntava qual seria o meu primeiro paciente. Imaginava seu rosto.

Imaginava se teria muitos problemas, a até onde eu poderia ajudá-lo.  E até arriscaria um super diagnóstico.


Se me perguntassem hoje, eu tristemente iria dizer: “não lembro”.  Nem sei quantas consultas, nem todos os diagnósticos. A medicina é assim, invasora. Não que eu não goste de me sentir invadida as vezes.

Quer saber coisas das quais não esquecerei? O primeiro paciente que perdi. Aliás, a primeira paciente.  Ela, senhora distinta, seus 70 e poucos anos. No salão de beleza, num dia da semana. Ela era apenas uma senhora a fazer seus cabelos, e eu apenas uma estudante, indo pro cinema e indo visitar a mãe no trabalho. No salão de beleza.

Eu era um nada. Eu era o nada. Terceiro ano de faculdade, eu nem tinha ainda peso nas costas. Eu nem sabia o que era isso.

Ela parou. Foi assim de lado, se jogando para o chão, se despedindo da vida a cada segundo que se passava.

E eu, um nada, no terceiro ano, encontrei o meu peso nas costas.

Fui chamada para interceptá-la. Para lutar por ela. O nada andou em sua direção, dois segundos e um toque, o nada já sabia o que estava acontecendo. Ela parou, nos meus braços, e eu nem sabia o que era isso.
Mais alguns segundos para eu me tocar que tinha de fazer alguma coisa. “Mas o que, meu Deus?”. Olhei para meus dois amigos, estudantes, que me acompanhavam, e não vi olhos. Vi um espelho de tudo aquilo que se passava dentro de mim.

Abrir a boca, respirar por ela, colocar as mãos em seu peito, um, dois, três... Ser o coração de alguém não é uma tarefa muito fácil...

Até me interromperam. Um ser se disse médico. Mandou transportá-la de lá.  Eu sabia que  aquilo estava errado. Eu sabia que alguma coisa estava errada. Mas eu era apenas uma estudante de medicina.  A estudante, agora com o peso nas costas.

O fim já se sabe. É o fim, e basta dizer isso.

A primeira paciente que perdi se foi, e eu nem era médica, muito menos ela era a minha paciente. Contudo, o que ela me deu, ficou em mim para sempre: o peso nas costas.

Todo médico que se preze o carrega. Com o tempo ele fica mais fácil de carregar. Com o tempo você se torna uma pessoa mais forte. Mas no fundo, todo bom médico sabe bem do que eu estou falando.

 Devem estar se perguntando: “Se é tanto peso assim, porque fazer medicina?” Eu bem vos digo.
A primeira paciente que ganhei também não era minha. Eu também era uma mera acadêmica, desta vez no quinto ano. Demorei, dois anos, com o peso nas costas, de tal forma que minha coluna já estava ficando torta. Ela chegou na hora certa.

Com 37 semanas, 53 centímetros. Eu fui a primeira pessoa que ela viu no mundo. Fui a primeira pessoa que viu seu respirar, a primeira a saber que ela estava viva, e bem.

E esse dia eu também não esqueço.

No fundo acho que todo médico, só se torna um médico de verdade, no dia em que ganha o seu precioso peso nas costas.

Dói um pouco, incomoda, as vezes, mas é ele que nos faz mais fortes, que nos lembra que estamos vivos e que temos essa missão no mundo.

Seja em qualquer profissão, o importante mesmo é descobrir qual a sua função no mundo.

Se você não concorda com isso, bem, então, viva na sua bolha. Sót não se esqueça que um dia ela pode estourar.