segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Puxa-sacos

T
enha medo dos puxa-sacos. 
Hoje, na fila do almoço, me deparo com um casal de prováveis colegas de trabalho. Uma morena bonita e bem aperaltada, e um jovem barbudo com o look clássico de escritório, conversando aquelas fofocas de escritório. 
-"Quando cheguei, falei para ele que ele era muito bom! Disse que já tinha ouvido falar dele, que ele era sensacional... 
-"Ah, claro! Tipo, 'Você é o cara!' - concordou a menina
-"Meu, eu insuflei tanto o ego do cara, que ele ficou todo feliz, depois deixou eu fazer ...." 
Me recusei a ouvir o resto, senão eu ia vomitar ali no buffet, antes mesmo de enfiar qualquer comida à boca. 
Lembrei de muitas, inúmeras vezes em que presenciei situações parecidas. 
Entendo que na sociedade moderna as relações interpessoais, principalmente as profissionais podem ser delicadas e devem obedecer às regras de hierarquia. 
Não sou contra o respeito. Ou as regras de boa convivência, coisa que confesso, tenho aprendido no decorrer destes duros anos. 
Entretanto, aquele puxa-saquismo descomedido e desnecessário, o qual identificamos de longe as mazelas falsas da personalidade que vos fala, que em nada combinam com o que sai daquela boca, esse sim, não tenho medo: tenho pavor. Afinal, a hipocrisia é o primeiro passo para o desvio de caráter. E todo caráter torto começa com uma mentira reta. 
Na verdade, o momento do puxa-saquismo é sempre bem bizarro. Quem está de fora e vê sente-se entranho, sem lugar. Acostumei-me até com essas situações. Contudo, hoje foi diferente. Eu via o ar de triunfo do puxa-saco, a vitória elegante do Coringa, e devo dizer que trouxa mesmo é o tolo do ego inflado. Aqui o chamarei de Trouxa.
Por isso, amigos, tenham medo dos puxa-sacos. 
Eles são por vezes traiçoeiros. Estão ali, não porque querem na maioria das vezes, mas por não poder estar em outro lugar. Muitos nem querem um Trouxa mandando neles. Muitos não estão nem aí pro Trouxa. Só pensam no seu proveito e deleite próprios. Só defendem os seus próprios interesses. 
Não tenha só medo dos puxa-sacos, exatamente. Tenha medo de você perante a eles. 
Os puxa-saco não mostram os seus defeitos. Não te desafiam. Não te intrigam. Não te forçam a evoluir. Não forçam o seu melhor. 
Eles te enganam, e te ajudam a enganar a si mesmo cada vez mais, fingindo assim que está tudo bem. E depois pelas costas destilam seu veneno, com ar de triunfo. 
Por fim, tenha dó dos puxa-sacos. Eles nem personalidade têm. Ainda não se definem, não tem opinião própria, a não ser a do Trouxa, são Camaleões que mudam de cor e de figura de acordo com a situação que se é imposta, e se camuflam muitas vezes perante as paisagens mais inóspitas que se pode ter.
Afinal, cercado de puxa-sacos, você nunca vai saber quando aquele elogio ou aquela admiração é sincera e verdadeira
Vamos, então, colocar os puxa-saco nos seus devidos lugares: na parede da cozinha pra quando você estiver precisando de uma sacola plástica. 

terça-feira, 24 de maio de 2016

Cadê meu pai?

Dia das mães 




Oficialmente, cresci sem pai. Se me perguntarem se senti falta: sim. 
Tão quão era a minha revolta na minha meninice, que um dia, ainda criança no colégio , numa sessão de venda de fotos dos dias dos pais, eu, mesmo sem ter um pai vivo, fui lá bater a foto, homenageando alguém que eu nunca conheci, mas que tenho a certeza, ainda é um dos anjos que passeiam me guiando por aí. Levei uma bronca, afinal de contas, eram tempos difíceis, os cruzeiros não vinham fácil, e saiam mais rápido ainda do bolso. Uma de minhas mães ficou furiosa, mas quando me questionou o motivo, eu disse de alto e bom tom: "cansei de sentir inveja das outras crianças. Afinal, eu quero ter um pai também."
Como eu estava enganada...
Que sã justificativa a mente de uma criança de 10 anos pode ter? 
E como um daqueles momentos mágicos que acontece na sua vida, quem me despertou foi a professora, alguns dias depois, com as belas palavras, das quais eu jamais esquecerei: "Mas você tem mais de uma mãe! E elas são mãe e pai também."
Era verdade. 
O que me faltou de pai, bem o tive em muitas mães.  Mais do que duas, quatro ou até cinco se você for contar os detalhes. 
Cada uma cuidava de um aspecto. 
Uma financeiro, outra do lar, outra de nós, outra da escola, outra dos amigos.
E uma e outra, assim, revezavam as horas. 
Hora de acordar na madrugada e fazer o café da manhã quando nem havia sol ainda. 
Hora de lavar a louça, limpar a mesa, vestir o uniforme. De fazer a trança de raiz e puxar até a testa o cabelo enrolado. De fazer o lanche. 
Hora de dirigir quilômetros até o colégio. 
Hora de buscar no colégio, sem se atrasar para não ter medo de eu achar que seria esquecida. De brigar pela roupa suja do recreio. Do dever de casa. Dos livros. 
Hora do almoço. De lavar a louça. De aprender a cuidar da casa. Do dever de casa. Do café da tarde. 
De cuidar dos bichos. 
Hora de brincar. De quebrar o dente na grade. De separar a briga dos irmãos. De levar umas palmadas. De gritar por silêncio. 
Hora da cama feita. De fazer as contas após todo mundo ter ido dormir. De ser a última a apagar a luz da casa. Hora de dormir. 
Hora de acordar cedo mesmo sendo domingo. De comer tapioca. De pegar o jornal. De ver seriado na TV aberta que nunca vai ter o final. 
Hora de acordar para a vida. Se arrumar para pegar o ônibus para ir sozinha para a escola, orgulhosa disso. De carregar seus próprios livros. De cansar de andar em ônibus lotado.
Hora do primeiro convite de 15 anos. 
De ir para os 15 anos das amigas. De chegar antes das 1h da manhã. De sentir vergonha por a mãe estar indo buscar tão cedo na balada. De esperar acordada, mesmo dizendo que vai dormir, até você chegar fazendo barulho do cadeado ou na porta.
Hora dos seus próprios 15 anos. De fazer escova e maquiagem. De dizer que você é a lindo(a). Hora de pensar em homens. Hora de se apaixonar. Da dor de cotovelo. De ficar apreensiva com que os homens podem fazer com você. 
Hora de apresentar os amigos. Levar a amiga em casa. Hora dormir na casa da amiga. Hora de falar de sexo.
Hora de aguentar a raiva. Hora de segurar a raiva. De usar o termo "aborrecente". De brigar, sim, brigar mesmo. Hora de querer que você volte a ser criança. Hora de se sentir mal por estar pensando isso. 
Hora de escolher o futuro. Hora de ler as cartas, para ver se ele promete. De dar força, qualquer seja a sua decisão. De fazer mais contas, baseado no que você diz o que vai fazer, mesmo sem ter a mínima certeza. Hora de ficar feliz quando você consegue. De querer chorar quando você está triste. De não saber o que fazer. 
Hora de prestar contas. De abrir uma conta.  De ter o primeiro cartão de crédito.De cuidar do dinheiro. De parar de gastar dinheiro.
Hora de sair de casa. 
Hora de morrer de medo do futuro. 
De chegar em casa cansado e ter que fazer sua própria comida. De lavar a própria roupa. De esquecer a roupa na máquina de lavar. De descobrir que o copo sujo no quarto ainda está lá, e não vai sair, pois só você pode tirar. 
Hora de sentir saudade. De chorar no telefone. De querer voltar a ser criança. 
Hora de acordar cedo! De fazer o café. De se arrumar para ir ao trabalho. De lavar a louça, de novo, a bendita hora de lavar a louça! Hora de dirigir para o trabalho.
Hora de chegar em casa sem hora. De desistir do jantar e só comer um lanche. Nem vou falar da louça...
Hora de fazer as contas. De ficar apreensivo com as contas. De pedir dinheiro. De emprestar os reais que não estão sobrando. De dar o dinheiro que você não tem. 
Hora de voltar para casa. 
Hora de te receber de novo em casa, como se o tempo não tivesse passado e como se aquelas muitas horas não tivessem existido, entre todas que você esteve distante.
Hora de esperar você chegar. De acordar de madrugada para dar comida. De acalmar as cólicas. De tomar remédio. De ver você crescendo. De levar você pra escola. 
Hora de escutar a professora: 
"A sua mãe é mãe e pai também...."
Se me perguntarem se meu lado "macho alfa" deixou de ser evoluído, eu digo: pelo contrário. As minhas mães eram, sim, mais "macho" que a maioria dos homens que conheci. 
Fiz cirurgia, uma área relativamente "masculina" e até certo ponto machista, tenho personalidade forte e impetuosa, e não me faltam rédeas para cuspir fogo ou coçar o saco que não tenho, quando necessário. Aprendi bem com elas. 
Se me perguntarem se tenho traumas: sim, somos humanos frágeis, tolos, falíveis e falhos. Muitos traumas fui eu mesma que criei. Tenho a certeza que todas fizeram o seu melhor. 
Se me perguntassem se faltou alguma coisa:  sim, algumas horas. Ainda faltam, até hoje. 
É que nós, jovens deixamos passar aos olhos valores que só vamos perceber assim, "velhos". A noção do tempo muda no decorrer da vida. 
As mesmas horas que nos doaram, como ações de uma bolsa de valores, aumentam de valor cada vez mais quanto mais o tempo passa e quanto mais você enxerga a vida nele. A ponto de, no início, lá pelas fraudas, nem reconhecermos que elas existem, e serem de grande valia os minutos do final. 
Se me perguntarem então se você mudaria alguma coisa, eu diria: quero ser igual à minha mãe quando eu crescer.